segunda-feira, 23 de outubro de 2017

Opinião: APESAR DA APARENTE NÃO INTERFERÊNCIA DOS MILITARES NA POLÍTICA, A REFORMA DO SETOR DA SEGURANÇA CONTINUA A SER UM TEMA DEVERAS IMPORTANTE

Os militares são apenas bodes expiatórios, ou seja, são acusados injustamente de serem os maus da fita, patinhos feios e responsáveis pela desgraça nacional. Porém, nunca foram nem são o problema da Guiné-Bissau, o verdadeiro problema da Guiné-Bissau desde independência a esta parte chama-se PAIGCWOOD, no dia em que essa força politica abandonar a cena da política nacional, o país terá uma paz duradoura e desenvolvimento, caso contrário, continuaremos reféns desse monstro.    

A contínua instabilidade na Guiné-Bissau torna necessário um seguimento contínuo e aprofundado sobre a evolução da situação, especialmente, nas questões que dizem diretamente respeito às Forças armadas (FA), a sua interferência na política e as políticas de Reforma do Setor da Segurança (RSS). Assim, far-se-á uma pequena revisão histórica sobre algumas das dinâmicas da crise política na Guiné-Bissau.

O incomensurável papel desempenhado pelas FA no período da luta pela libertação armada, a sua presença e a interferência na esfera da decisão política são, cada vez mais, notórias devido à imposição dos seus interesses. Esta situação tem provocado sucessivas crises no relacionamento civil-militares e coloca em risco os laços de proximidade que outrora existiram.

No decorrer da luta armada o poder civil sobrepunha-se ao dos militares, excetuando as situações em que alguns comandantes das zonas e camaradas decidiram praticar atos que feriam os desígnios da luta e comprometiam seriamente a execução das decisões políticas. Nesta sequência, para estancar a hemorragia interna, em 1963, foi convocado o Congresso de Cassacá, presidido pelo líder do PAIGC, Engenheiro Amílcar Cabral, que entre várias medidas importantes destacou o fuzilamento dos rebelados.

Segundo Sanhá (2012) “a espiral de violência e ininterrupta crise política de que o país nunca se conseguiu desprender teve início no Congresso de Cassacá e alastrou-se até aos nossos dias, não obstante alguns esforços evidenciados para promover a reconciliação nacional”.

O regime militar que vigorava, após a independência, permitiu a partilha do poder entre os civis e militares no sistema político do único partido. Entretanto, não havia a separação clara dos poderes entre civil e militares. Neste sentido, Huntington (1957) “afirma que quando existe separação clara do poder, os civis não têm forma de interferir nos assuntos militares, que por sua vez se manterão fora das questões políticas”.

Os militares tinham autonomia suficiente para definir as suas políticas e usar a força, o que lhes permitiu ocupar altos cargos no Estado, entre os quais o de Presidente da República, Primeiro-Ministro, Ministros e Deputados da Nação. As nomeações processavam-se em função do reconhecimento de ser um bom combatente e alto oficial das Forças Armadas Revolucionárias do Povo (FARP).

Sendo a cúpula dominada maioritariamente pelos militares foram adotados vários métodos não recomendáveis, nomeadamente: repressão, sevícias e assassinatos, o que inibiu a participação cívica no processo de construção do novo Estado, tal como tinha sido prometido durante a luta.

Entretanto, quando o país decidiu adotar o sistema democrático face à imposição internacional, a revisão constitucional extinguiu o artigo 4º, que consagrava o PAIGC como “força dirigente da Sociedade e Estado”.

Mal-acostumados e sem preparação para enfrentar a nova realidade, não obstante a nova Constituição da República lhes ter atribuído novas funções, tal como postulado no artigo 21.º que refere que “as forças armadas são apartidárias, não podendo os elementos, no ativo exercer qualquer atividade política”, os militares continuaram a intrometer-se nos assuntos políticos, subvertendo a ordem constitucional através dos golpes de Estado.

Segundo Huntington (1957) “o controlo subjetivo é verificado no sistema político antidemocrático e os políticos reforçam os poderes através de politização dos militares, criando assim laços com os civis”. Na opinião de alguns analistas políticos esses atos devem-se, em parte, ao incitamento dos políticos para que os militares prossigam com golpes de Estado. Isso acontece porque quem governa não consegue satisfazer as exigências mínimas nos setores sociais e os opositores aproveitam-se dessa situação para pedir intervenção dos militares.

Na verdade, o poder nunca foi exercido cabalmente pelos políticos na Guiné-Bissau, encontrando-se disseminado em vários polos da sociedade, com particular incidência no setor da segurança, uma situação que tem contribuído largamente para dificultar o controlo político efetivo dos militares. De acordo com Janowitz (1960) “a socialização profissional dos militares através das suas relações e simpatia com os valores da sociedade permitiu o controlo civil dos militares”.

A interferência dos militares na política tem sido uma constante na história da Guiné-Bissau, desde a independência, mas em particular desde 1980 e, ainda mais acentuadamente, desde o conflito civil de 1998. Esta interferência manifestou-se de várias formas, nomeadamente, através de um conflito militar, vários golpes de Estado, e outras formas de violência e coação.

Desde cedo que a Comunidade Internacional (CI) identificou os militares e a instabilidade político-militar, como um dos entraves ao desenvolvimento do país. Assim, foram feitas várias tentativas de RSS, que passaram pela diminuição do número de efetivos, mas todos eles com resultados muito limitados.

A primeira intervenção teve início com a criação do Gabinete das Nações Unidas para a Construção da Paz (UNOGBIS) e do Programa de Desarmamento, Desmobilização, Reintegração e Reinserção dos Antigos Combatentes (PDRRI) e foi apoiado pelo Banco Mundial (BM), o Banco Africano de Desenvolvimento (BAD), a Suécia, a Holanda e a Comunidade Europeia (CE).

Estes projetos foram-se tornando mais complexos e acompanhando a evolução do pensamento sobre este tipo de intervenções a nível internacional, assumindo uma forma holística que se consubstancia no projeto de RSS da UE. O Conselho da União Europeia, pressionado por Portugal e pelo Reino Unido, envia para a Guiné-Bissau uma Missão no âmbito da Política Comum de Segurança e Defesa (PCSD) e uma vez mais os objetivos não foram cumpridos.

Em 2011, Angola enviou a Missão Militar Angolana na Guiné-Bissau (MISSANG), mas um novo golpe militar veio travar mais um esforço na implementação da RSS. A atuação da missão gerou muitas tensões, que foram identificadas por alguns atores do conflito como uma das causas do golpe de estado de 2012.

É na sequência do Golpe de Estado de 12 de Abril, que entra a missão militar da CEDEAO na Guiné-Bissau (ECOMIB). Esta missão visava, entre outros “ajudar o país na implementação da RSS”.

Desde as últimas eleições, após o golpe de estado de 2012, que a Guiné-Bissau tem vivido um período de grave crise e além do governo não funcionar plenamente, existe um clima de tensão cada vez mais polarizado. No entanto, aparentemente, os militares têm-se abstido de intervir diretamente na política e a ECOMIB é creditada como uma força dissuasora da intervenção militar durante todo este período, embora existam vários pontos de vista em conflito no que diz respeito ao impacto da sua presença.

As organizações internacionais, nomeadamente as Organizações das Nações Unidas (ONU) e a Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental (CEDEAO) receiam a interferência dos militares na atual crise político-institucional. Deste modo, quando se aproximava a data para a sua retirada, a CEDEAO decide prolongar a missão na Guiné-Bissau.

Embora vários analistas temam o recrudescimento da violência e tenham receio que com a retirada da ECOMIB, ocorra um novo golpe de Estado, o ex-Chefe de Estado das Forças Armadas, e Presidente do Partido Republicano da Independência e Desenvolvimento (PRID), na Oposição, Dr. Afonso Té, diz ter confiança nos militares e que não haverá golpe de Estado, porque as forças armadas têm demonstrado a sua equidistância das lutas políticas.

É ainda, importante referir que, recentemente, foi detido o veterano da independência guineense Comandante Manuel dos Santos que, numa entrevista concedida ao Diário de Notícias no dia 20/06/2017, referiu que “há possibilidade de o país estar na eminência de um golpe de Estado”.

Não obstante o aparente afastamento e o respeito pelos princípios e regras democráticas, por parte dos militares, durante a atual crise político-institucional na Guiné-Bissau, as FA continuam a ter um papel preponderante no país e é de importância capital compreender a sua evolução, as várias tentativas de reforma através de projetos e políticas públicas e as suas limitações. Além disso, perante o contexto atual, as organizações internacionais continuam preocupadas com a necessidade de reformas em vários sectores tidos como nevrálgicos, sobretudo no que diz respeito à segurança para garantir de forma eficaz a paz e a estabilidade.

Por isso, entendemos que é importante continuar a analisar a evolução das relações civil-militares na Guiné-Bissau e o seu impacto no controlo político dos militares.


Por: Ismael Sadilú Sanhá
Doutorando em Políticas Públicas pelo ISCTE – Instituto Universitário de Lisboa

Fontes consultadas:
  1. http://www.globalsecurity. org/military/world/int/ecomib. htm;
  2. Huntington, S. (1957). “The Soldier and the State: The Theory and Politics of Civil-Military Relations”. Cambridge, MA: The Belknap Press of Harvard University Press;
  3. Janowitz, M. (1960). “The Profissional Soldier: A Social and Political institutions”, Governace, Vol. 9, No. 3, pp. 248-264 print=true;
  4. Sanhá, Ismael Sadilú (2012) – A cooperação com a Guiné-Bissau: os projetos de apoio à reforma do sector de segurança (RSS), Dissertação de Mestrado em Relações Internacionais, Faculdade de Ciências Humanas e Socias da Universidade Lusíada de Lisboa.